Uma
das características dos profissionais da educação deveria ser a
busca constante da reflexão sobre as práticas pedagógicas. Essa
reflexão torna-se mais profícua quando nos debruçamos sobre a
teoria para analisá-las.
Por
falar em teoria, queremos apresentar um trecho de uma palestra
proferida pela professora doutora Suely Amaral Mello (Indaial, 2015)
consonante com essa preocupação constante que devemos ter com as
nossas práticas e que muito tem produzido polêmicas e discussões:
“[...]
mudar o conjunto. É mudar a nossa relação com a criança. É a
forma como a gente organiza o espaço. É a forma como a gente pensa
a alfabetização e o uso do tempo. É a forma como nos relacionamos,
como nos relacionamos com as crianças, é a forma como permitimos
que as crianças se relacionem entre elas. Como nos relacionamos com
as famílias e até como nos relacionamos, nós, adultos, dentro da
escola”.
Queremos
ressaltar desse excerto o questionamento que Mello nos faz e que nos
lança o desafio de compreender o que significa adentrar no mundo da
cultura escrita: “[...] a forma como a gente pensa a
alfabetização”. E como a gente pensa tem de ser continuamente
renovado, repensado e refletido. Para tanto, encaminhamos um texto de
Emilia Ferreiro, publicado no Brasil na obra de FARIA,
Ana Lúcia Goulart (org.). O coletivo infantil em creches e
pré-escolas: falares e saberes. São Paulo: Cortez, 2007, p.
55-66.
O ingresso nas
culturas da escrita1
“As
crianças são capazes de pensar e de compreender e têm o direito à
cidadania na escrita”.
Emilia
Ferreiro
Este título, "O
ingresso nas culturas da escrita", no plural, porque com muita
frequência, quando se fala de escrita, se pensa unicamente na
escrita alfabética e no alfabeto latino.
Embora não possa
falar com pleno conhecimento das outras culturas da escrita,
lembremo-nos, desde já, que a chamada cultura ocidental foi a última
das grandes culturas a descobrir a importância da escrita, depois
das culturas da China, do Vale do Hindo, do Egito e dos povos da
antiga Mesopotâmia.
Devemos
considerar, porém, que tais escritas passaram por diversas
peripécias, que algumas delas ainda são usadas e que somos
herdeiros das transformações pelas quais a escrita mesopotâmica
passou até chegar ao alfabeto.
Os sistemas de
escrita são diferentes, como o são também os usos sociais. Na
história, o controle da escrita sempre esteve muito ligado ao
exercício do poder. E, de alguma maneira, essa ligação continua a
existir, apesar da democratização das práticas de escrita ligadas
à educação obrigatória.
Quando
falamos do ingresso na cultura escrita, pensamos imediatamente na
aprendizagem escolar e, frequentemente, pensa-se na leitura como
decodificação e na escrita como cópia repetitiva de sinais
gráficos. O aspecto mais interessante do contato com a escrita (ou
seja, o poder "dizer por escrito") deve, aparentemente, vir
depois, depois que a técnica tiver sido dominada. O aprendiz é nada
menos do que uma máquina de sonorização ou uma copiadora.
Ignoram-se
as complexidades presentes no processo de ingresso na cultura escrita
porque se reduz a escrita a um sistema de traços ou sinais que
deveriam ter uma relação de correspondência idealizada com
os sons da fala.
1. Entrar na
cultura da escrita
Para
compreender o que significa o ingresso nas culturas da escrita, é
preciso pensar na sociedade, mais do que na escola, e é necessário
pensar na escrita como objeto cultural criado por inúmeros usuários,
consolidado através dos tempos, e carregado de sinais deixados
propositalmente por grupos sociais que se sucederam ao longo do
tempo. É preciso pensar nos
livros, mas também nos jornais, nas cartas, nos documentos oficiais,
nas publicidades, nos calendários, nos mapas, e em vários outros
objetos cuja razão de ser é a própria escrita.
Entrar
na cultura da escrita pressupõe muito mais do que conhecer as
letras. Implica compreender:
a)
como se organiza a língua quando se torna
língua escrita (como se narra por escrito, como se informa por
escrito, como se faz solicitações, como se agradece e como se
felicita alguém por escrito, ou seja, como se realizam por escrito
os atos de fala que já conhecemos nos contextos orais);
b)
como são os objetos criados pela cultura escrita (os vários objetos
mencionados antes, que têm nomes específicos e os diversos tipos de
livros que chamamos de enciclopédias, contos ilustrados,
dicionários, livros de poesia, antologias e muitos outros);
c)
compreender que tipo de texto é característico de cada um dos
diversos objetos citados, tendo como base indicadores específicos
como, por exemplo: o formato, a presença ou não de ilustrações, a
organização tipográfica etc.;
d)
como são as instituições criadas pela cultura escrita: as
bibliotecas, as editoras, as livrarias, mas conhecer também os
jornalistas, os escritores, ou seja, as várias profissões
construídas pelos usos sociais da escrita.
Iniciar-se
na cultura escrita e conseguir transitar com familiaridade dentro
dela, como se ela fosse a própria casa, este
deveria ser o objetivo básico da educação, das
creches até os níveis superiores. Para as crianças afortunadas,
que crescem cercadas de adultos leitores, o processo começa muito
antes da escolarização: faz parte da socialização primária.
2. Ler e
escrever
Algumas
crianças sabem, desde o início, que os livros formam parte do
ambiente doméstico, sabem que têm um lugar especial na casa, sabem
que algumas pessoas podem passar muito tempo olhando a mesma página
cheia de sinais pretos com um fundo branco. Esse modo de olhar
chama-se ler. Às vezes, além de olhar, as pessoas dizem coisas um
tanto incompreensíveis. A ação de ler não deixa sinais visíveis
no objeto e, quando os deixa, são sinais de escrita, não de
leitura: por exemplo, um sublinhado ou um comentário à margem.
As
crianças entendem muito melhor o que quer dizer escrever porque a
ação de escrever produz resultados visíveis. Uma página antes
depois da atividade de escrita é qualitativamente diferente,
enquanto a página do livro, antes e depois da leitura, permanece
idêntica. As crianças podem tentar escrever desde que começam a
controlar o lápis e a folha de papel. Um olhar atento permite
descobrir quando os pequenos estão desenhando, quando estão
reproduzindo
letras (enquanto formas) e quando estão tentando escrever. Em todos
esses casos, o que produzem são linhas retas ou curvas, combinações
dessas linhas e, às vezes, pontos. Mas não é a mesma coisa
utilizar as formas gráficas para tentar reproduzir o contorno dos
objetos (isto é, desenhar) e tentar reproduzir os sinais que os
adultos chamam de letras ou números, reprodução que pode ter
finalidades puramente gráficas, mas que, às vezes, tem claras
intenções comunicativas, ou seja, escreve-se com a intenção de
"dizer alguma coisa por escrito".
Escrever
é fazer sinais, mas quantos e quais são necessários para fazer com
que ali se "diga" intencionalmente aquilo que quero que
diga? As condições para "dizer por escrito" começam a
ser exploradas muito cedo, quando o ambiente propicia.
No
início, as letras se distribuem com absoluta liberdade no amplo
espaço da folha de papel. Progressivamente, alinham-se,
apoiando sua base numa linha imaginária. Organizadas deste modo, as
sequências tomam-se cada vez mais reduzidas, até chegar a um número
ideal que se situa entre três e seis sinais gráficos. No início,
as letras podiam se repetir, sem preocupação com a variedade. Aos
poucos, as crianças impõem a si mesmas uma forte restrição: as
letras não devem se repetir (pelo menos, não em posição
contígua). Além disso, pouco a pouco, as crianças adotam outra
restrição, de grande importância: um nome escrito deve
diferenciar-se de outro, seja pelo número de sinais ou pela posição
dos mesmos, de modo a garantir, por meio de uma diferença objetiva,
as diversas intenções subjetivas.
O
que as crianças estão explorando, sem saber, é justamente uma
propriedade universal dos sistemas de escrita: com um número
limitado de sinais gráficos é possível obter, por combinação,
diferentes conjunto.
3.
O significado da escrita
O significado da
escrita, portanto, garantido por duas condições: uma
subjetiva, a intenção de quem escreve; a outra, objetiva, as
propriedades apresentadas pela sequência de letras produzidas. É
como se, uma vez construído o significante de maneira correta, o
significado estivesse assegurado. Não é pouca coisa o fato de, com
4 ou 5 anos, trabalhar espontaneamente com tais problemas que,
certamente, nenhum adulto mostra e muito menos ensina.
Não é fácil
fazer uma lista de tudo o que as crianças têm de aprender para se
apropriar da escrita. Quem pensa na escrita apenas como código de
correspondência entre letras e fonemas esquece a enorme
variabilidade tipográfica existente no ambiente urbano; esquece que
a alternância entre letras minúsculas e maiúsculas dá ao leitor
informações de tipo semântico e não apenas fonológico; esquece
que a separação entre as palavras, presente na escrita, não existe
na oralidade. Considerar seriamente a especificidade da escrita
obriga-nos a abandonar a ideia
de código.
A escrita não se
limita a "tomar visível o que é audível". De todas as
propriedades do significante linguístico, a escrita retém apenas
algumas delas. Não é a fotografia da fala, mas uma sua
representação. Nenhuma representação é idêntica, análoga ao
objeto representado. Um mapa geográfico, por exemplo, ou um mapa de
uma cidade, não possui planícies ou montanhas, nem ruas ou
edifícios. Possui sinais que representam as variações do terreno
ou da topografia e omite uma infinidade de detalhes que são
pertinentes ao território "do modo como é" e à cidade
"do modo como se apresenta ao caminhante". Os mapas são,
em certo sentido, representações com um alto grau de abstração,
são olhares “de longe" do objeto concreto.
De maneira
semelhante, podemos afirmar que a escrita é um olhar "de longe"
sobre a língua, um olhar afastado da língua "enquanto tal",
isto é, daquela presente nos atos de comunicação oral. Um olhar
que omite uma infinidade de detalhes que são necessários para fazer
com que "o que foi dito" seja recebido de acordo com as
intenções do falante.
A escrita oferece
uma série de sinais que nos permite reconstituir a língua; em
qualquer sistema alfabético desenvolvido através dos séculos, os
sinais não são unívocos nem se relacionam unicamente com os sons.
Há redundâncias e omissões. Há sinais que representam aspectos
semânticos e também aspectos fonológicos.
4. Intérprete
e interpretante
Se as escritas
desenvolvidas ao longo dos séculos fossem somente códigos, a
tradução automática seria uma brincadeira de crianças. É
justamente porque as escritas não são códigos que os leitores
devem ser intérpretes, o
que é muito diferente de ser um decodificador.
São as práticas
sociais de interpretação que transformam os sinais escritos em
objetos linguísticos. Os sinais são opacos até que um leitor
adulto permita que a criança, em processo de desenvolvimento,
perceba as complexas relações entre aqueles sinais e uma
determinada produção linguística.
O ato que
transforma aqueles sinais em objetos linguísticos
é um ato de interpretação.
O leitor é um
intérprete. Mas
quando este ato se realiza para um "outro" - concebido como
parcial ou momentaneamente incapaz de atuar como intérprete - o
interprete torna-se interpretante.
Como se passa da
escrita, enquanto conjunto de sinais inicialmente organizados, à
escrita como objeto simbólico? Através
de um interpretante que introduz as crianças em um mundo mágico.
Ao efetuar o ato,
aparentemente banal que chamamos de "um ato de leitura", o
interpretante informa à criança que aqueles sinais têm poderes
especiais: ao olhá-las,
simplesmente, se produz linguagem. Assistir
a um ato de leitura em voz alta é assistir a um espetáculo mágico.
O que há por trás daqueles sinais que faz com que o olho estimule a
boca a produzir linguagem? Com certeza, uma linguagem particular,
muito diferente da comunicação face a face. Quem lê não olha o
outro, mas sim a página. Quem lê parece falar para quem escuta, mas
aquilo que diz não
são as suas palavras, mas sim as de um outro. Através do
interpretante, um "outro" fala e, talvez, muitos "outros",
saídos sabe-se lá de onde, escondidos também por atrás daqueles
sinais.
5. O leitor é
ator
O leitor é, de
fato, um ator: empresta a sua voz (e com ela, o seu corpo), para
fazer com que o texto se re-apresente, isto é, para que volte a se
fazer presente. O interpretante, portanto, fala, mas não é ele quem
fala; o interpretante diz, mas o que diz não é o seu próprio
dizer, e sim aquele dos fantasmas que se concretizam por meio dele.
A leitura é um
grande cenário no qual é necessário descobrir quem são os atores,
quem são os autores, os diretores e também os tradutores, porque a
escrita faz a língua transitar por caminhos diferentes dos
habituais: o interpretante não reconstitui a língua de todos os
dias, mas oferece uma língua que é, ao mesmo tempo, análoga e
diferente daquela conhecida. O interpretante é um ilusionista que
tira do chapéu mágico, que é a sua boca, os mais imprevisíveis
objetos-palavras, em um leque de surpresas que parece infinito.
Há muito tempo,
as pesquisas psicopedagógicas nos confirmaram que existem
correlações positivas - nas crianças que assistiram a atos de
leitura em suas casas - entre a leitura de histórias em tenra idade
e seus rendimentos escolares posteriores. O que as correlações não
nos dizem é o que acontece, em termos de elaboração do
significado, entre o leitor e a criança. Alguns dos grandes
escritores conseguem nos restituir a magia daquele instante (apesar
de todas as distorções ligadas a uma lembrança reconstituída).
Por exemplo, Jean-Paul Sartre, neste extraordinário fragmento do seu
livro As palavras2:
Parte da magia
consiste no fato de que o próprio texto (ou melhor, as próprias
palavras, na mesma ordem) volta a se reapresentar várias vezes, com
os mesmos sinais. O que há nesses sinais que permite não apenas
provocar a linguagem, mas produzir várias vezes o mesmo texto oral?
O encanto das crianças pela leitura e a releitura da mesma história
está relacionada, de fato, com a seguinte descoberta fundamental: a
escrita fixa a língua, controla-a de tal modo que as palavras não
se perdem, não desaparecem, nem se substituem umas às outras. As
mesmas palavras, várias vezes: grande parte do mistério reside
nessa possibilidade de repetição, de reiteração, de
reapresentação.
Na escrita devem
existir as palavras, porque cada ato de leitura do mesmo livro
reconstitui invariavelmente o texto. Mas, de que modo as palavras
estão ali? Os adultos se exprimem assim: "aqui está dizendo
isto", e quando dizem "aqui" colocam o dedo indicador
em um grupo de sinais. Mas como fazem as letras para "dizer"?
Como podem dizer sem que alguém diga por elas? Mistério...
6. Do global à
análise
Como se passa da
escrita ligada à linguagem de um modo global e pré-analítico para
uma análise das relações existentes entre os sinais dentro de um
sistema de escrita?
O caminho é
difícil e cheio de obstáculos, mas se alguém for aprisionado pelo
mistério não vai sossegar até descobrir a chave do próprio
mistério. A ação do interpretante é essencial para a
transformação de um objeto opaco (os sinais como objetos físicos)
em um objeto simbólico (sinais que determinam linguagem). Essa
primeira e decisiva ação do interpretante suscita uma série de
indagações por parte da criança: quais são as propriedades
reconhecíveis dos sinais que podem ou não gerar linguagem? Quais
são as relações de semelhança e de diferença entre os sinais que
poderiam relacionar-se a semelhanças e diferenças na emissão oral?
Quais são as relações de equivalência entre sinais objetivamente
diferentes (c, k, q), mas que devem ser tratados como semelhantes? De
"tudo aquilo que se diz" e "do modo de dizê-lo",
o que se conserva naqueles sinais? O que o intérprete reconstitui de
tudo aquilo no ato singular de interpretação que chamamos de
leitura?
Para fazer com
que o ato, a leitura, realizado por um outro, se transforme em
conhecimento próprio, é necessária uma atividade específica por
parte da criança. É necessário algo mais que uma simples
interiorização, que poderia se confundir com uma imitação
interna. É necessário decompor e recompor os sinais, inventar
ideias
que expliquem por que às vezes os adultos dizem que faltam ou que
sobram letras, em suma, é preciso comportar-se como um verdadeiro
sujeito cognitivo. Uma interação complexa entre o interpretante, a
criança em desenvolvimento (intérprete, por sua vez, mas num outro
nível) e as propriedades do sistema de sinais, conduz lentamente à
transformação dos sinais: de objetos globalmente, mas não
analiticamente transparentes, em direção a uma crescente
analiticidade. Há um outro elemento-chave na evolução: descobrir
que a própria identidade se realiza também por escrito. Quando
alguém diz a uma criança: "este é o seu nome escrito",
está acrescentando um outro elemento ao mistério. Ampliar a própria
identidade através da escrita é algo extraordinário. As crianças
procuram repetir aquelas formas, beijam e acariciam aquela escrita,
abraçam-na dizendo "esta sou eu".
No início, a
descoberta do próprio nome escrito é fonte de orgulho e de prazer.
Mas, pouco depois, transforma-se em fonte de problemas: por que
aquelas letras e naquela determinada ordem são usadas para o meu
nome? Por que havendo tantas letras nesse mundo, devo compartilhar a
minha inicial com a de outras pessoas conhecidas e desconhecidas? Por
que os nomes têm tamanhos diferentes? Em seguida, quando as crianças
descobrem que as palavras ditas podem ser decompostas em sílabas,
tentam ver se, lendo uma sílaba em cada letra, conseguem ler todo o
seu nome escrito. Amarga surpresa: sobram letras e não podem ser
apagadas ou riscadas porque seria como se automutilar.
7. Leitura em
voz alta e o nome próprio escrito
Caminhando por
indagações suscitadas pelos dois fatos, começam a se testar e
reorganizam suas ideias, a informação recebida é transformada,
descobre-se, inventa-se. O drama de tantas crianças - de fato, a
maioria da população mundial - é que, da mesma forma que não
puderam contar com interpretantes nos seus primeiros anos de vida,
também não os encontram nem quando chegam à escola. A professora
de creche, a professora da escola da infância, a professora das
séries iniciais do ensino obrigatório, não se comportam como
intérpretes nem como interpretantes, mas sim como decodificadoras.
As famílias de sílabas e os conjuntos de letras reduzem o mistério
a um simples treinamento e a palavra se dissolve em fragmentos que
destroem o seu significado. Onde está a magia, o mistério, o
desafio a ser enfrentado? Onde está o objeto de conhecimento a ser
conquistado?
A alfabetização
como ingresso na cultura escrita deve estar ligada à legítima
exigência de distribuição democrática do poder. Ao contrário, a
alfabetização como aprendizagem de uma técnica é discriminatória,
porque favorece somente quem em casa garantiu o contato cotidiano com
livros e com leitores.
8. A escola
doente
Não são poucas
as crianças que realmente precisam da escola para ter um contato com
livros e com leitores. Ao contrário, é o caso da maioria das
crianças que nascem e vivem mal neste planeta Terra. Quero falar das
crianças da América Latina, que são as que melhor conheço. Elas
também são sensíveis à magia do mistério. Em várias escolas
rurais isoladas do México e nos campos de refugiados de Chiapas
assisti a leituras em voz alta que sempre produziram o mesmo
resultado: um silêncio encantado. Pouco importava se o texto lido
era mais ou menos adequado à idade das crianças, pouco importava se
o leitor modulava de maneira atraente a voz ou se tinha um tom
uniforme e pouco importava se tropeçava em algumas palavras. Sempre,
em todos os lugares, acontecia a mesma coisa: um silêncio encantado.
Mas os
professores acham difícil ensinar recorrendo a essa magia
desafiadora. Têm a sensação de "perder tempo" quando
leem
em voz alta. Preferem fichas de pré-escrita ou de pré-grafismo,
rituais de ma-me-mi-mo-mu,
a cópia de letras, de
sílabas ou palavras e de frases sem sentido. E continuam a fazê-lo
como se fazia há séculos, embora, nos tempos da Internet, do
correio eletrônico e da digitalização de documentos sejam
necessários outros saberes para se ter acesso à cultura escrita.
Claro, é preciso
reconhecer que não é fácil trabalhar com classes lotadas com 30 ou
40 crianças. Que a rotina diária alivia os neurônios da obrigação
de pensar (o professor não pensa, as crianças também não). Com má
remuneração e mal formados, os professores dos países endividados
não têm nem profissionalismo, nem ideais e estão ali como poderiam
estar atrás da escrivaninha de uma repartição pública.
Os ministérios
da educação pública publicam documentos com os quais é possível
concordar quase totalmente. Na prática, o que ocorre é diferente. A
profunda dissociação entre discurso e prática contribui para fazer
com que, por toda parte, impere o "faz de conta", O
professor "faz de conta que ensina", embora apenas repita
comandos consagrados pela tradição e longe de qualquer reflexão.
As crianças "fazem de conta que aprendem", porque enchem
de sinais os seus cadernos. Em setembro, todas as crianças devem ser
igualmente ignorantes, se não, que méritos o professor teria se
fosse constatado que alguns alunos sabem, e muito, em relação à
escrita? Em dezembro, devem ter se tomado já decodificadores, num
nível aceitável, e se isso não ocorre é porque "a família
não colabora" ou porque "são incapazes de aprender".
Os bons alunos são exibidos como o resultado do excelente método
empregado. Os outros são marginalizados porque trazem consigo,
dentro de si, a causa do próprio fracasso.
O professor não
lê, mas "ensina a ler". Não escreve, mas "ensina a
escrever". Estranhas aprendizagens que devem ocorrer com a
completa ignorância dos atos reais dos quais se pretende aproximar
os alunos. Para a criança que cresceu em contato com a cultura
escrita, os rituais escolares são tediosos, chatos, uma espécie de
"ritual de iniciação" ao qual é obrigado pela
instituição escolar. Mas ela sabe de que se trata, porque já viu
lerem, já leram para ela e há meses tenta escrever. Ao contrário,
para as crianças que nunca tiveram um livro nas mãos, e que desejam
aprender, esses rituais são absolutamente incompreensíveis. Olhar,
copiar, repetir. Nunca pensar, porque se corre o risco de errar.
Colocar a inteligência de lado, ou melhor, dobrá-la e colocá-la na
mochila antes de entrar na sala. Como poderão aprender nessas
condições, sendo reduzidas a um par de olhos, um par de ouvidos e
um aparelho fonador?
Apesar disso,
devemos ser otimistas. Existem, num crescendo, cada vez mais
professoras de creche, mais professoras de escola da infância, mais
professoras da escola obrigatória que entenderam, não obstante as
más condições de trabalho, que a inteligência está relacionada
com a aprendizagem e que o seu pensamento ativo estimula o pensamento
ativo dos seus alunos. Existem muitos lugares na América Latina em
que a alfabetização não é uma paródia, mas uma aventura real,
vivida com tanto entusiasmo compartilhado que ninguém quer ficar
fora dela.
As crianças são
capazes de pensar e de aprender. Todas as crianças. Todas têm o
direito de ser cidadãs da cultura escrita.
1
Artigo publicado na revista Bambini,
ano XXI, n. 2, de
fevereiro de 2005, traduzido do italiano por Fernanda Landucci
Ortale e Ilse Paschoal Moreira, com a revisão técnica de Ana Lúcia
Goulart de Faria.
2 As
palavras: Anne
Marie me fez sentar diante dela, na minha cadeirinha; inclinou-se,
abaixou as pálpebras, adormeceu. Daquele rosto de estátua saiu uma
voz de gesso. Perdi a cabeça: quem é que contava o quê? E para
quem? Minha mãe se fizera ausente: sem um sorriso, sem um sinal de
conivência, eu estava exilado. E ainda, eu não reconhecia seu modo
de falar. De onde tirava aquela segurança? No instante seguinte, eu
já entendi: era o livro que estava falando. Dele saíam frases que
me davam medo: eram autênticas centopeias; sussurravam sílabas e
letras, alongavam os ditongos, faziam vibrar as consoantes
geminadas; melodiosas, nasais, espaçadas por pausas e suspiros,
ricas de palavras desconhecidas, elas se encantavam consigo mesmas e
com seus meandros, sem se preocuparem comigo; às vezes,
desapareciam antes que eu pudesse entender, outras vezes, quando eu
havia entendido, elas segurança? No instante seguinte, eu já
entendi: era o livro que estava falando. Dele saíam frases que me
davam medo: eram autênticas centopeias; sussurravam sílabas e
letras, alongavam os ditongos, faziam vibrar as consoantes
geminadas; melodiosas, nasais, espaçadas por pausas e suspiros,
ricas de palavras desconhecidas, elas se encantavam consigo mesmas e
com seus meandros, sem se preocuparem comigo; às vezes,
desapareciam antes que eu pudesse entender, outras vezes, quando eu
havia entendido, elas continuavam se desenrolando de maneira nobre
rumo à conclusão, sem me dar a graça de uma só vírgula.
Certamente, um discurso desse tipo não era para mim. Quanto à
história, emperiquitara-se um pouco: o lenhador, a mulher e as
filhas, a fada, toda aquela gente miúda, os nossos semelhantes,
tinham adquirido majestade; falava-se de seus trapos com
magnificência, as palavras transmitiam o próprio caráter às
coisas, transformando as ações em ritos e os acontecimentos em
cerimônias.
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