sábado, 20 de junho de 2015

O ingresso nas culturas da escrita - Emilia Ferreiro

Uma das características dos profissionais da educação deveria ser a busca constante da reflexão sobre as práticas pedagógicas. Essa reflexão torna-se mais profícua quando nos debruçamos sobre a teoria para analisá-las.

Por falar em teoria, queremos apresentar um trecho de uma palestra proferida pela professora doutora Suely Amaral Mello (Indaial, 2015) consonante com essa preocupação constante que devemos ter com as nossas práticas e que muito tem produzido polêmicas e discussões:

[...] mudar o conjunto. É mudar a nossa relação com a criança. É a forma como a gente organiza o espaço. É a forma como a gente pensa a alfabetização e o uso do tempo. É a forma como nos relacionamos, como nos relacionamos com as crianças, é a forma como permitimos que as crianças se relacionem entre elas. Como nos relacionamos com as famílias e até como nos relacionamos, nós, adultos, dentro da escola”.


Queremos ressaltar desse excerto o questionamento que Mello nos faz e que nos lança o desafio de compreender o que significa adentrar no mundo da cultura escrita: “[...] a forma como a gente pensa a alfabetização”. E como a gente pensa tem de ser continuamente renovado, repensado e refletido. Para tanto, encaminhamos um texto de Emilia Ferreiro, publicado no Brasil na obra de FARIA, Ana Lúcia Goulart (org.). O coletivo infantil em creches e pré-escolas: falares e saberes. São Paulo: Cortez, 2007, p. 55-66.



O ingresso nas culturas da escrita1


As crianças são capazes de pensar e de compreender e têm o direito à cidadania na escrita”.
Emilia Ferreiro


Este título, "O ingresso nas culturas da escrita", no plural, porque com muita frequência, quando se fala de escrita, se pensa unicamente na escrita alfabética e no alfabeto latino.

Embora não possa falar com pleno conhecimento das outras culturas da escrita, lembremo-nos, desde já, que a chamada cultura ocidental foi a última das grandes culturas a descobrir a importância da escrita, depois das culturas da China, do Vale do Hindo, do Egito e dos povos da antiga Mesopotâmia.

Devemos considerar, porém, que tais escritas passaram por diversas peripécias, que algumas delas ainda são usadas e que somos herdeiros das transformações pelas quais a escrita mesopotâmica passou até chegar ao alfabeto.

Os sistemas de escrita são diferentes, como o são também os usos sociais. Na história, o controle da escrita sempre esteve muito ligado ao exercício do poder. E, de alguma maneira, essa ligação continua a existir, apesar da democratização das práticas de escrita ligadas à educação obrigatória.

Quando falamos do ingresso na cultura escrita, pensamos imediatamente na aprendizagem escolar e, frequentemente, pensa-se na leitura como decodificação e na escrita como cópia repetitiva de sinais gráficos. O aspecto mais interessante do contato com a escrita (ou seja, o poder "dizer por escrito") deve, aparentemente, vir depois, depois que a técnica tiver sido dominada. O aprendiz é nada menos do que uma máquina de sonorização ou uma copiadora.

Ignoram-se as complexidades presentes no processo de ingresso na cultura escrita porque se reduz a escrita a um sistema de traços ou sinais que deveriam ter uma relação de correspondência idealizada com os sons da fala.


1. Entrar na cultura da escrita


Para compreender o que significa o ingresso nas culturas da escrita, é preciso pensar na sociedade, mais do que na escola, e é necessário pensar na escrita como objeto cultural criado por inúmeros usuários, consolidado através dos tempos, e carregado de sinais deixados propositalmente por grupos sociais que se sucederam ao longo do tempo. É preciso pensar nos livros, mas também nos jornais, nas cartas, nos documentos oficiais, nas publicidades, nos calendários, nos mapas, e em vários outros objetos cuja razão de ser é a própria escrita.


Entrar na cultura da escrita pressupõe muito mais do que conhecer as letras. Implica compreender:
a) como se organiza a língua quando se torna língua escrita (como se narra por escrito, como se informa por escrito, como se faz solicitações, como se agradece e como se felicita alguém por escrito, ou seja, como se realizam por escrito os atos de fala que já conhecemos nos contextos orais);
b) como são os objetos criados pela cultura escrita (os vários objetos mencionados antes, que têm nomes específicos e os diversos tipos de livros que chamamos de enciclopédias, contos ilustrados, dicionários, livros de poesia, antologias e muitos outros);
c) compreender que tipo de texto é característico de cada um dos diversos objetos citados, tendo como base indicadores específicos como, por exemplo: o formato, a presença ou não de ilustrações, a organização tipográfica etc.;
d) como são as instituições criadas pela cultura escrita: as bibliotecas, as editoras, as livrarias, mas conhecer também os jornalistas, os escritores, ou seja, as várias profissões construídas pelos usos sociais da escrita.

Iniciar-se na cultura escrita e conseguir transitar com familiaridade dentro dela, como se ela fosse a própria casa, este deveria ser o objetivo básico da educação, das creches até os níveis superiores. Para as crianças afortunadas, que crescem cercadas de adultos leitores, o processo começa muito antes da escolarização: faz parte da socialização primária.


2. Ler e escrever


Algumas crianças sabem, desde o início, que os livros formam parte do ambiente doméstico, sabem que têm um lugar especial na casa, sabem que algumas pessoas podem passar muito tempo olhando a mesma página cheia de sinais pretos com um fundo branco. Esse modo de olhar chama-se ler. Às vezes, além de olhar, as pessoas dizem coisas um tanto incompreensíveis. A ação de ler não deixa sinais visíveis no objeto e, quando os deixa, são sinais de escrita, não de leitura: por exemplo, um sublinhado ou um comentário à margem.

As crianças entendem muito melhor o que quer dizer escrever porque a ação de escrever produz resultados visíveis. Uma página antes depois da atividade de escrita é qualitativamente diferente, enquanto a página do livro, antes e depois da leitura, permanece idêntica. As crianças podem tentar escrever desde que começam a controlar o lápis e a folha de papel. Um olhar atento permite descobrir quando os pequenos estão desenhando, quando estão reproduzindo letras (enquanto formas) e quando estão tentando escrever. Em todos esses casos, o que produzem são linhas retas ou curvas, combinações dessas linhas e, às vezes, pontos. Mas não é a mesma coisa utilizar as formas gráficas para tentar reproduzir o contorno dos objetos (isto é, desenhar) e tentar reproduzir os sinais que os adultos chamam de letras ou números, reprodução que pode ter finalidades puramente gráficas, mas que, às vezes, tem claras intenções comunicativas, ou seja, escreve-se com a intenção de "dizer alguma coisa por escrito".

Escrever é fazer sinais, mas quantos e quais são necessários para fazer com que ali se "diga" intencionalmente aquilo que quero que diga? As condições para "dizer por escrito" começam a ser exploradas muito cedo, quando o ambiente propicia.

No início, as letras se distribuem com absoluta liberdade no amplo espaço da folha de papel. Progressivamente, alinham-se, apoiando sua base numa linha imaginária. Organizadas deste modo, as sequências tomam-se cada vez mais reduzidas, até chegar a um número ideal que se situa entre três e seis sinais gráficos. No início, as letras podiam se repetir, sem preocupação com a variedade. Aos poucos, as crianças impõem a si mesmas uma forte restrição: as letras não devem se repetir (pelo menos, não em posição contígua). Além disso, pouco a pouco, as crianças adotam outra restrição, de grande importância: um nome escrito deve diferenciar-se de outro, seja pelo número de sinais ou pela posição dos mesmos, de modo a garantir, por meio de uma diferença objetiva, as diversas intenções subjetivas.

O que as crianças estão explorando, sem saber, é justamente uma propriedade universal dos sistemas de escrita: com um número limitado de sinais gráficos é possível obter, por combinação, diferentes conjunto.


3. O significado da escrita


O significado da escrita, portanto,  garantido por duas condições: uma subjetiva, a intenção de quem escreve; a outra, objetiva, as propriedades apresentadas pela sequência de letras produzidas. É como se, uma vez construído o significante de maneira correta, o significado estivesse assegurado. Não é pouca coisa o fato de, com 4 ou 5 anos, trabalhar espontaneamente com tais problemas que, certamente, nenhum adulto mostra e muito menos ensina.

Não é fácil fazer uma lista de tudo o que as crianças têm de aprender para se apropriar da escrita. Quem pensa na escrita apenas como código de correspondência entre letras e fonemas esquece a enorme variabilidade tipográfica existente no ambiente urbano; esquece que a alternância entre letras minúsculas e maiúsculas dá ao leitor informações de tipo semântico e não apenas fonológico; esquece que a separação entre as palavras, presente na escrita, não existe na oralidade. Considerar seriamente a especificidade da escrita obriga-nos a abandonar a ideia de código.

A escrita não se limita a "tomar visível o que é audível". De todas as propriedades do significante linguístico, a escrita retém apenas algumas delas. Não é a fotografia da fala, mas uma sua representação. Nenhuma representação é idêntica, análoga ao objeto representado. Um mapa geográfico, por exemplo, ou um mapa de uma cidade, não possui planícies ou montanhas, nem ruas ou edifícios. Possui sinais que representam as variações do terreno ou da topografia e omite uma infinidade de detalhes que são pertinentes ao território "do modo como é" e à cidade "do modo como se apresenta ao caminhante". Os mapas são, em certo sentido, representações com um alto grau de abstração, são olhares “de longe" do objeto concreto.

De maneira semelhante, podemos afirmar que a escrita é um olhar "de longe" sobre a língua, um olhar afastado da língua "enquanto tal", isto é, daquela presente nos atos de comunicação oral. Um olhar que omite uma infinidade de detalhes que são necessários para fazer com que "o que foi dito" seja recebido de acordo com as intenções do falante.


A escrita oferece uma série de sinais que nos permite reconstituir a língua; em qualquer sistema alfabético desenvolvido através dos séculos, os sinais não são unívocos nem se relacionam unicamente com os sons. Há redundâncias e omissões. Há sinais que representam aspectos semânticos e também aspectos fonológicos.


4. Intérprete e interpretante


Se as escritas desenvolvidas ao longo dos séculos fossem somente códigos, a tradução automática seria uma brincadeira de crianças. É justamente porque as escritas não são códigos que os leitores devem ser intérpretes, o que é muito diferente de ser um decodificador.

São as práticas sociais de interpretação que transformam os sinais escritos em objetos linguísticos. Os sinais são opacos até que um leitor adulto permita que a criança, em processo de desenvolvimento, perceba as complexas relações entre aqueles sinais e uma determinada produção linguística.

O ato que transforma aqueles sinais em objetos linguísticos é um ato de interpretação. O leitor é um intérprete. Mas quando este ato se realiza para um "outro" - concebido como parcial ou momentaneamente incapaz de atuar como intérprete - o interprete torna-se interpretante.

Como se passa da escrita, enquanto conjunto de sinais inicialmente organizados, à escrita como objeto simbólico? Através de um interpretante que introduz as crianças em um mundo mágico.

Ao efetuar o ato, aparentemente banal que chamamos de "um ato de leitura", o interpretante informa à criança que aqueles sinais têm poderes especiais: ao olhá-las, simplesmente, se produz linguagem. Assistir a um ato de leitura em voz alta é assistir a um espetáculo mágico. O que há por trás daqueles sinais que faz com que o olho estimule a boca a produzir linguagem? Com certeza, uma linguagem particular, muito diferente da comunicação face a face. Quem lê não olha o outro, mas sim a página. Quem lê parece falar para quem escuta, mas aquilo que diz não são as suas palavras, mas sim as de um outro. Através do interpretante, um "outro" fala e, talvez, muitos "outros", saídos sabe-se lá de onde, escondidos também por atrás daqueles sinais.


5. O leitor é ator


O leitor é, de fato, um ator: empresta a sua voz (e com ela, o seu corpo), para fazer com que o texto se re-apresente, isto é, para que volte a se fazer presente. O interpretante, portanto, fala, mas não é ele quem fala; o interpretante diz, mas o que diz não é o seu próprio dizer, e sim aquele dos fantasmas que se concretizam por meio dele.

A leitura é um grande cenário no qual é necessário descobrir quem são os atores, quem são os autores, os diretores e também os tradutores, porque a escrita faz a língua transitar por caminhos diferentes dos habituais: o interpretante não reconstitui a língua de todos os dias, mas oferece uma língua que é, ao mesmo tempo, análoga e diferente daquela conhecida. O interpretante é um ilusionista que tira do chapéu mágico, que é a sua boca, os mais imprevisíveis objetos-palavras, em um leque de surpresas que parece infinito.

Há muito tempo, as pesquisas psicopedagógicas nos confirmaram que existem correlações positivas - nas crianças que assistiram a atos de leitura em suas casas - entre a leitura de histórias em tenra idade e seus rendimentos escolares posteriores. O que as correlações não nos dizem é o que acontece, em termos de elaboração do significado, entre o leitor e a criança. Alguns dos grandes escritores conseguem nos restituir a magia daquele instante (apesar de todas as distorções ligadas a uma lembrança reconstituída). Por exemplo, Jean-Paul Sartre, neste extraordinário fragmento do seu livro As palavras2:


Parte da magia consiste no fato de que o próprio texto (ou melhor, as próprias palavras, na mesma ordem) volta a se reapresentar várias vezes, com os mesmos sinais. O que há nesses sinais que permite não apenas provocar a linguagem, mas produzir várias vezes o mesmo texto oral? O encanto das crianças pela leitura e a releitura da mesma história está relacionada, de fato, com a seguinte descoberta fundamental: a escrita fixa a língua, controla-a de tal modo que as palavras não se perdem, não desaparecem, nem se substituem umas às outras. As mesmas palavras, várias vezes: grande parte do mistério reside nessa possibilidade de repetição, de reiteração, de reapresentação.

Na escrita devem existir as palavras, porque cada ato de leitura do mesmo livro reconstitui invariavelmente o texto. Mas, de que modo as palavras estão ali? Os adultos se exprimem assim: "aqui está dizendo isto", e quando dizem "aqui" colocam o dedo indicador em um grupo de sinais. Mas como fazem as letras para "dizer"? Como podem dizer sem que alguém diga por elas? Mistério...


6. Do global à análise


Como se passa da escrita ligada à linguagem de um modo global e pré-analítico para uma análise das relações existentes entre os sinais dentro de um sistema de escrita?

O caminho é difícil e cheio de obstáculos, mas se alguém for aprisionado pelo mistério não vai sossegar até descobrir a chave do próprio mistério. A ação do interpretante é essencial para a transformação de um objeto opaco (os sinais como objetos físicos) em um objeto simbólico (sinais que determinam linguagem). Essa primeira e decisiva ação do interpretante suscita uma série de indagações por parte da criança: quais são as propriedades reconhecíveis dos sinais que podem ou não gerar linguagem? Quais são as relações de semelhança e de diferença entre os sinais que poderiam relacionar-se a semelhanças e diferenças na emissão oral? Quais são as relações de equivalência entre sinais objetivamente diferentes (c, k, q), mas que devem ser tratados como semelhantes? De "tudo aquilo que se diz" e "do modo de dizê-lo", o que se conserva naqueles sinais? O que o intérprete reconstitui de tudo aquilo no ato singular de interpretação que chamamos de leitura?

Para fazer com que o ato, a leitura, realizado por um outro, se transforme em conhecimento próprio, é necessária uma atividade específica por parte da criança. É necessário algo mais que uma simples interiorização, que poderia se confundir com uma imitação interna. É necessário decompor e recompor os sinais, inventar ideias que expliquem por que às vezes os adultos dizem que faltam ou que sobram letras, em suma, é preciso comportar-se como um verdadeiro sujeito cognitivo. Uma interação complexa entre o interpretante, a criança em desenvolvimento (intérprete, por sua vez, mas num outro nível) e as propriedades do sistema de sinais, conduz lentamente à transformação dos sinais: de objetos globalmente, mas não analiticamente transparentes, em direção a uma crescente analiticidade. Há um outro elemento-chave na evolução: descobrir que a própria identidade se realiza também por escrito. Quando alguém diz a uma criança: "este é o seu nome escrito", está acrescentando um outro elemento ao mistério. Ampliar a própria identidade através da escrita é algo extraordinário. As crianças procuram repetir aquelas formas, beijam e acariciam aquela escrita, abraçam-na dizendo "esta sou eu".

No início, a descoberta do próprio nome escrito é fonte de orgulho e de prazer. Mas, pouco depois, transforma-se em fonte de problemas: por que aquelas letras e naquela determinada ordem são usadas para o meu nome? Por que havendo tantas letras nesse mundo, devo compartilhar a minha inicial com a de outras pessoas conhecidas e desconhecidas? Por que os nomes têm tamanhos diferentes? Em seguida, quando as crianças descobrem que as palavras ditas podem ser decompostas em sílabas, tentam ver se, lendo uma sílaba em cada letra, conseguem ler todo o seu nome escrito. Amarga surpresa: sobram letras e não podem ser apagadas ou riscadas porque seria como se automutilar.


7. Leitura em voz alta e o nome próprio escrito


Caminhando por indagações suscitadas pelos dois fatos, começam a se testar e reorganizam suas ideias, a informação recebida é transformada, descobre-se, inventa-se. O drama de tantas crianças - de fato, a maioria da população mundial - é que, da mesma forma que não puderam contar com interpretantes nos seus primeiros anos de vida, também não os encontram nem quando chegam à escola. A professora de creche, a professora da escola da infância, a professora das séries iniciais do ensino obrigatório, não se comportam como intérpretes nem como interpretantes, mas sim como decodificadoras. As famílias de sílabas e os conjuntos de letras reduzem o mistério a um simples treinamento e a palavra se dissolve em fragmentos que destroem o seu significado. Onde está a magia, o mistério, o desafio a ser enfrentado? Onde está o objeto de conhecimento a ser conquistado?

A alfabetização como ingresso na cultura escrita deve estar ligada à legítima exigência de distribuição democrática do poder. Ao contrário, a alfabetização como aprendizagem de uma técnica é discriminatória, porque favorece somente quem em casa garantiu o contato cotidiano com livros e com leitores.


8. A escola doente


Não são poucas as crianças que realmente precisam da escola para ter um contato com livros e com leitores. Ao contrário, é o caso da maioria das crianças que nascem e vivem mal neste planeta Terra. Quero falar das crianças da América Latina, que são as que melhor conheço. Elas também são sensíveis à magia do mistério. Em várias escolas rurais isoladas do México e nos campos de refugiados de Chiapas assisti a leituras em voz alta que sempre produziram o mesmo resultado: um silêncio encantado. Pouco importava se o texto lido era mais ou menos adequado à idade das crianças, pouco importava se o leitor modulava de maneira atraente a voz ou se tinha um tom uniforme e pouco importava se tropeçava em algumas palavras. Sempre, em todos os lugares, acontecia a mesma coisa: um silêncio encantado.

Mas os professores acham difícil ensinar recorrendo a essa magia desafiadora. Têm a sensação de "perder tempo" quando leem em voz alta. Preferem fichas de pré-escrita ou de pré-grafismo, rituais de ma­-me-mi-mo-mu, a cópia de letras, de sílabas ou palavras e de frases sem sentido. E continuam a fazê-lo como se fazia há séculos, embora, nos tempos da Internet, do correio eletrônico e da digitalização de documentos sejam necessários outros saberes para se ter acesso à cultura escrita.

Claro, é preciso reconhecer que não é fácil trabalhar com classes lotadas com 30 ou 40 crianças. Que a rotina diária alivia os neurônios da obrigação de pensar (o professor não pensa, as crianças também não). Com má remuneração e mal formados, os professores dos países endividados não têm nem profissionalismo, nem ideais e estão ali como poderiam estar atrás da escrivaninha de uma repartição pública.

Os ministérios da educação pública publicam documentos com os quais é possível concordar quase totalmente. Na prática, o que ocorre é diferente. A profunda dissociação entre discurso e prática contribui para fazer com que, por toda parte, impere o "faz de conta", O professor "faz de conta que ensina", embora apenas repita comandos consagrados pela tradição e longe de qualquer reflexão. As crianças "fazem de conta que aprendem", porque enchem de sinais os seus cadernos. Em setembro, todas as crianças devem ser igualmente ignorantes, se não, que méritos o professor teria se fosse constatado que alguns alunos sabem, e muito, em relação à escrita? Em dezembro, devem ter se tomado já decodificadores, num nível aceitável, e se isso não ocorre é porque "a família não colabora" ou porque "são incapazes de aprender". Os bons alunos são exibidos como o resultado do excelente método empregado. Os outros são marginalizados porque trazem consigo, dentro de si, a causa do próprio fracasso.

O professor não lê, mas "ensina a ler". Não escreve, mas "ensina a escrever". Estranhas aprendizagens que devem ocorrer com a completa ignorância dos atos reais dos quais se pretende aproximar os alunos. Para a criança que cresceu em contato com a cultura escrita, os rituais escolares são tediosos, chatos, uma espécie de "ritual de iniciação" ao qual é obrigado pela instituição escolar. Mas ela sabe de que se trata, porque já viu lerem, já leram para ela e há meses tenta escrever. Ao contrário, para as crianças que nunca tiveram um livro nas mãos, e que desejam aprender, esses rituais são absolutamente incompreensíveis. Olhar, copiar, repetir. Nunca pensar, porque se corre o risco de errar. Colocar a inteligência de lado, ou melhor, dobrá-la e colocá-la na mochila antes de entrar na sala. Como poderão aprender nessas condições, sendo reduzidas a um par de olhos, um par de ouvidos e um aparelho fonador?

Apesar disso, devemos ser otimistas. Existem, num crescendo, cada vez mais professoras de creche, mais professoras de escola da infância, mais professoras da escola obrigatória que entenderam, não obstante as más condições de trabalho, que a inteligência está relacionada com a aprendizagem e que o seu pensamento ativo estimula o pensamento ativo dos seus alunos. Existem muitos lugares na América Latina em que a alfabetização não é uma paródia, mas uma aventura real, vivida com tanto entusiasmo compartilhado que ninguém quer ficar fora dela.

As crianças são capazes de pensar e de aprender. Todas as crianças. Todas têm o direito de ser cidadãs da cultura escrita.

1 Artigo publicado na revista Bambini, ano XXI, n. 2, de fevereiro de 2005, traduzido do italiano por Fernanda Landucci Ortale e Ilse Paschoal Moreira, com a revisão técnica de Ana Lúcia Goulart de Faria.

2 As palavras: Anne Marie me fez sentar diante dela, na minha cadeirinha; inclinou-se, abaixou as pálpebras, adormeceu. Daquele rosto de estátua saiu uma voz de gesso. Perdi a cabeça: quem é que contava o quê? E para quem? Minha mãe se fizera ausente: sem um sorriso, sem um sinal de conivência, eu estava exilado. E ainda, eu não reconhecia seu modo de falar. De onde tirava aquela segurança? No instante seguinte, eu já entendi: era o livro que estava falando. Dele saíam frases que me davam medo: eram autênticas centopeias; sussurravam sílabas e letras, alongavam os ditongos, faziam vibrar as consoantes geminadas; melodiosas, nasais, espaçadas por pausas e suspiros, ricas de palavras desconhecidas, elas se encantavam consigo mesmas e com seus meandros, sem se preocuparem comigo; às vezes, desapareciam antes que eu pudesse entender, outras vezes, quando eu havia entendido, elas segurança? No instante seguinte, eu já entendi: era o livro que estava falando. Dele saíam frases que me davam medo: eram autênticas centopeias; sussurravam sílabas e letras, alongavam os ditongos, faziam vibrar as consoantes geminadas; melodiosas, nasais, espaçadas por pausas e suspiros, ricas de palavras desconhecidas, elas se encantavam consigo mesmas e com seus meandros, sem se preocuparem comigo; às vezes, desapareciam antes que eu pudesse entender, outras vezes, quando eu havia entendido, elas continuavam se desenrolando de maneira nobre rumo à conclusão, sem me dar a graça de uma só vírgula. Certamente, um discurso desse tipo não era para mim. Quanto à história, emperiquitara-se um pouco: o lenhador, a mulher e as filhas, a fada, toda aquela gente miúda, os nossos semelhantes, tinham adquirido majestade; falava-se de seus trapos com magnificência, as palavras transmitiam o próprio caráter às coisas, transformando as ações em ritos e os acontecimentos em cerimônias.

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