segunda-feira, 22 de junho de 2015

PALESTRA SUELY AMARAL MELLO - INDAIAL 20/04/2015



Pensar a educação das crianças de 0 a 3 anos hoje, frente a experiência que nós já temos acumulada de educação de crianças dessa idade, exige uma mudança profunda, radical e de conjunto.

Por que profunda? Porque de fato frente àquilo que a gente sabia e frente ao que a gente sabe hoje sobre quem são as crianças pequenas e as crianças pequenininhas e como elas aprendem isso vai exigir uma profunda mudança nas nossas atitudes. É como colocar um pouco de ponta cabeça aquilo que a gente fazia. Repensar, pensar de novo. Pensar em novos dados.

Por que uma mudança radical? Porque não se trata de pensar elementos superficiais, mas se trata de mudar algumas práticas, se trata de mudar nossas atitudes, mudar o referencial teórico pelo qual a gente pensa a infância.

E por que de conjunto? Porque não é o jeito que a gente dá banho. É mudar o conjunto. É mudar a nossa relação com a criança. É a forma como a gente organiza o espaço. É a forma como a gente pensa a alfabetização e o uso do tempo. É a forma como nos relacionamos, como nos relacionamos com as crianças, é a forma como permitimos que as crianças se relacionem entre elas. Como nos relacionamos com as famílias e até como nos relacionamos, nós, adultos, dentro da escola.

É urgente atualizarmos nossas práticas em educação infantil. Frente a tudo que se tem pesquisado nos últimos anos, não só na educação, na antropologia, na psicologia, na filosofia, na medicina, na área nova do conhecimento da medicina que se chama neurociência, … então nós temos descoberto por um conjunto de pesquisas quem é a criança pequenininha, que tempo é esse da infância, o que é o desenvolvimento humano, o que esse desenvolvimento envolve e portanto o papel da escola nesse processo, que papel tem a escola das crianças pequenininhas, que papel tem o professor nessa educação, que lugar a criança deve ocupar nessas relações. É um conjunto de elementos novos dos quais a gente precisa se apropriar nessa tarefa, todos nós, educadores da infância, temos como compromisso conhecer e começar a praticar sob pena da gente morrer e daqui a duzentos anos ter a consciência pesada por não ter feito as coisas que a gente devia fazer.

Quero apresentar uma discussão teórica. A teoria sempre orienta o nosso trabalho, quer a gente saiba, quer a gente não saiba, quer a gente goste, quer a gente não goste, tem sempre teoria por detrás daquilo que a gente faz. E quando a gente não conhece essa teoria, a gente poder ser, como costumo dizer, inocente, inútil. Útil para poucos e inútil para as novas gerações que precisam do trabalho da gente.

Quero trabalhar um pouco nessa linha, da gente pensar o que é que a gente sabe hoje sobre criança pequena e que constitui uma teoria que fundamenta a nossa ação pedagógica na escola. O que se sabe hoje sobre educação da criança pequena e que constitui um fundamento para a gente constituir uma teoria pedagógica para educar crianças pequenas.

Vou começar a discutir dois conceitos e esses conceitos são fundamentais, não só para pensar o nosso trabalho ao longo do ano, pensar o nosso trabalho enquanto professor de educação infantil, mas ele é fundamental para a gente pensar todo dia o que é que a gente está fazendo, o que a gente está proporcionando para as nossas crianças.

O primeiro conceito que eu quero começar a discutir é o conceito de ser humano. Quem é o ser humano? E alguém pode dizer “xii, vão começar lá no comecinho?” Nós vamos começar lá nesse comecinho porque é essa compreensão que é o divisor de águas de tudo que se tem descoberto nos últimos tempos e que torna a educação das crianças pequenininhas uma ciência. E que torna o professor de educação infantil e o professor e a professora de criança pequenininha (e eu estou chamando de professor todos os profissionais que se envolvam com criança pequena, porque na hora de aprender a criança não diferencia se é a professora, se é a faxineira, se é a merendeira, se é a diretora, é o adulto que se relaciona com a criança, que faz esse trabalho de professor, ainda que, nós vamos discutir) professor de criança pequena precisa descobrir, como diz a professora Ana Lúcia Goulart de Faria, da Unicamp, como é que é ser professor, que não dá aula, porque não é sob a forma de aula que as crianças aprendem, que não tem sala de aula portanto, pois as crianças estão aprendendo em todos os lugares onde elas estão e não tem aluno, tem criança, que tem uma característica, tem uma forma de aprender muito específica. Com isso não estou defendendo a escola de Ensino Fundamental do jeito que ela é organizada, não. Nós sabemos que é preciso, necessário e urgente também transformar de forma profunda, radical e de conjunto essa escola, que no mínimo tem garantido que 40% dos alunos que passam pela escola hoje e pensando em doze anos de ensino de quem entra no primeiro ano e sai lá no décimo segundo no Ensino Médio, essa escola que nós estamos vendo, que estamos sustentando com os nossos impostos, essa escola está formando 40% (para ser bem cuidadosa nos dados), de analfabetos funcionais. Pessoas que passam pela escola, ficam aí doze anos e não sabem ler e escrever. Também essa escola de Ensino Fundamental precisa ser profundamente transformada. Mas corresponde à escola de Educação Infantil, de três a seis anos, que se baseou na escola de Ensino Fundamental, que olha para a escola de Ensino Fundamental para se constituir. E a escola de 0 a 3 que costuma olhar para a escola de 3 a 6 para se constituir, tudo isso precisa ser revisto profundamente. É disso que nós vamos tratar hoje.

Então nós vamos começar pelo conceito de ser humano, entender o conceito de desenvolvimento, o que é desenvolver, depois vamos falar sobre o conceito de infância, o conceito de criança, vamos discutir o processo de como as crianças aprendem, como as crianças pequenininhas aprendem e vamos pensar nas implicações pedagógicas disso. E vamos pensar como devemos atuar na educação da criança pequenininha.

E nesse momento, para a gente discutir como tem de atuar, para dar uma força na nossa reflexão e nas nossas referências, eu trouxe três vídeos que mostram a experiência mais avançada em Educação Infantil no mundo. Que é a experiência Pickler/Lóczi. Trago essa experiência nessa perspectiva de a gente perceber um pouco o que setenta anos de pesquisa desse grupo, que faz pesquisa com criança pequenininha desde o final da Segunda Guerra Mundial. O que eles têm para contar para a gente? Então vamos aos vídeos, eles são antigos, tem vinte e poucos anos. Precisam ser olhados com os olhos de hoje mas essa experiência constitui a matriz para todas as experiências legais que acontecem pelo mundo: na Itália, as experiências legais na Espanha, as experiências muito legais na Suécia, na Finlândia, na Noruega, na Dinamarca. Onde tem experiência legal em Educação Infantil aprendeu com Lóczi. Trago essa experiência nessa perspectiva e as pessoas perguntam: “É para fazer igual?” Se a gente der conta, é para fazer igualzinho. Porque é a coisa mais legal que tem.

Então nós vamos falar de três elementos: da comunicação emocional, essencial para a formação e o desenvolvimento das crianças pequenas, vamos falar da atividade autônoma com objetos, vamos falar da autonomia do movimento. Esses três pilares da experiência de Lóczi nós vamos tratar aqui.

Vamos começar a falar um pouco da concepção de ser humano e porque esse conceito é o divisor de águas na formação do professor de Educação Infantil. Quem é o ser humano e como ele se torna humano. Será que ele já nasce humano? Tinha um bebezinho aqui, agora, há pouco. Se a gente pegar esse bebezinho e deixar ele quietinho num lugar, sem ver ninguém, a gente vai lá garante a comidinha, coloca uma mamadeira na ponta de uma vara de pescar, vai lá e alimenta, vai lá com umas luvas de borracha troca, não fala com ele, não conversa, não estabelece nenhum contato com ele, garante a alimentação e deixa ele lá. Será que ele vira um ser humano como a gente? Que fala, que pensa, que conta história, que discute, que resolve problemas. Pouco tempo atrás se pensava que sim. Se pensava que a inteligência e a personalidade das pessoas eram naturais, nasciam com a pessoa. Por isso é que as creches tinham monitoras, pagens, babás, gente que dava banho nas crianças na hora que precisava, que trocava as crianças na hora que precisava, alimentava as crianças na hora em que precisava e ponto. Por isso é que as nossas creches eram um depósito de crianças. Por que? Porque se pensava que tudo o que o ser humano ia ser quando crescesse já estava dado lá em cada um e que a educação não interferiria. A educação ensinaria a pedir licença, dizer faz favor, dez mais dez, cinco mais cinco, quinze menos cinco. E o papel da educação era esse: transmitir conteúdos e informações. Os estudos mais recentes demonstraram que o papel da educação é muito pouco. Graças a Deus porque senão a gente ia perder os nossos postos de trabalho já, pois se fosse só para garantir a informação, hoje a informação chega nas pessoas e nas crianças pequenas, inclusive, de várias formas. Na verdade, nós fomos salvos pelo gongo da ciência, que mostra que nosso papel como professor de Educação Infantil é formar aquilo que a ciência pensava que antigamente já era natural da pessoa e que a ciência contemporânea descobre que não é natural. Inteligência e personalidade são aprendidos desde que o bebê nasce. A forma como eu toco, o que eu falo com ele, como eu falo com ele, como que eu troco, como eu dou banho, como eu alimento, o que eu arrumo para ele fazer, enfim. Daí até os mais velhos a mesma relação. Como eu me relaciono, que material eu disponibilizo para ele, que coisas eu trago para ele conhecer, para ele fazer, como é que eu trato... Esses elementos é que formam a inteligência e a personalidade de cada criança. Então, quando a gente fala de desenvolvimento, papel da escola é desenvolver as crianças, promover o desenvolvimento, promover o desenvolvimento do quê? Da inteligência e da personalidade. Por isso que o professor é o intelectual mais importante na sociedade. Ele é o responsável pela formação da inteligência e da personalidade das novas gerações. Não está para ensinar a somar, subtrair e multiplicar, isso também, mas isso é o mais visível. O invisível talvez constitua um dos elementos mais importantes, que é, justamente, a capacidade de resolver problemas, a capacidade de se expressar nas diferentes linguagens, os valores, os motivos das ações, a moral, a ética, as habilidades, as capacidades, aquilo que a gente chamava de dom antigamente, tudo isso é fruto das aprendizagens. Então, o ser humano, ele se humaniza por conta da educação. A educação tem o papel de formar o que é o humano nos seres humanos. Nós, seres humanos, nascemos com nosso corpo, aquilo que nós identificamos como corpo humano, não tem pelo, que não tem dente canino que vem até aqui para disputar a carne na raça… essa característica física humana nós temos, mas a característica intelectual, a característica subjetiva, isso é aprendido. A infância é esse tempo fundamental para essas aprendizagens. Nós não precisamos ficar inventando coisas para as crianças aprenderem na Educação Infantil. Criança na Educação Infantil não precisa aprender a ler e a escrever porque ela está ocupadíssima formando as funções psíquicas de sua personalidade: memória, percepção, linguagem oral, outras formas de expressão, pensamento, imaginação, autocontrole da vontade… aprendido. A pessoa não é disciplinada; a pessoa está. Ela aprende a ser disciplinada.

Esse conjunto dessas funções psicológicas que só os seres humanos têm, essas funções são aprendidas. Por isso fora da criação, fora da educação coletiva, os bebês não se tornariam seres humanos como a gente. Poderiam até ter um físico humano mas não seriam pessoas com capacidades, habilidades e aptidões que as pessoas que vivem em sociedade aprendem a ter. Esse é um ponto de partida para o nosso trabalho. Esse conceito de ser humano como produto dos processos educativos é fundamental para nossa atividade. Para a gente saber o que é que nós estamos fazendo na escola. Essa concepção de infância é fundamental para o nosso trabalho. Estamos educando as crianças e formando as crianças… Vigotsky, inclusive, não gostava dessa palavra “desenvolvimento” mas ele acabou usando porque é uma palavra que as pessoas usam para se comunicar. Mas ele dizia que quando a gente trata de desenvolvimento humano, nós precisamos entender formação e desenvolvimento. Porque quando a gente trata de desenvolvimento dá a impressão de uma coisa que já tem e nós vamos garantir só o aumento quantitativo e qualitativo. E quando a gente vai falar de memória voluntária, quando a gente vai falar de atenção voluntária, não aquela atenção… porque os cachorros também prestam atenção. Aí explode uma coisa aqui e vai para lá, esquece isso aqui. Essa atenção voluntária… estou prestando tanta atenção que ao ouvir um barulho lá fora, continuo prestando atenção no que você está falando. Esse controle sobre a nossa memória, esse controle sobre a nossa atenção, mais a imaginação são funções que são aprendidas nas relações sociais e esse é o papel do educador da infância. A infância como um tempo dessa apreensão.

E o conceito de criança? Será que a gente continua com o mesmo conceito que a gente tinha como criança coitadinha, pequenininha, ah tadinho, bobinho, pode falar qualquer coisa perto dele que ele não entende? A criança que nasce dessa compreensão teórica é uma criança competente, capaz, capaz de aprender. Não sabe, coitada, porque não nasceu sabendo. Mas é capaz de aprender se eu souber ensinar. É aí que se torna importantíssimo compreender como é que as pessoas aprendem. Aprendem as habilidades, aprendem as memórias, aprendem a pensar, aprendem a controlar sua própria conduta. Como as pessoas aprendem a prestar atenção? Como será que as pessoas aprendem? Vigotsky vai falar de uma lei genética geral do desenvolvimento humano. O que diz essa lei? A princípio explica tudo, porque é geral. Antes de uma função (um pensamento, a fala, a imaginação, uma habilidade), antes dela ser interna, ela é externa. Antes de eu resolver problemas sozinha, teve uma outra etapa anterior de resolução de problemas em grupo. Antes de eu imaginar sozinho, teve uma etapa anterior à minha imaginação que foi imaginar coletivamente. Antes de eu ser educado eu mesmo, saber como me comporto, pedir licença, por favor, você poderia, teve uma etapa em que eu experimentei essas relações sociais coletivamente. Então, todas as funções psicológicas superiores que são as que nos caracterizam como seres humanos, diferente dos outros animais, são funções que são internalizadas. Elas existem no coletivo, em certas relações sociais e por isso eu vou internalizando, vou fazer com que elas também se tornem minhas. Está aí uma discussão importantíssima para a gente pensar quais são as situações que nós estamos oferecendo de aprendizado para nossas crianças. O que nós estamos ensinando para as crianças de fato. Porque elas estão aprendendo aquilo que elas estão vivendo com a gente. Isso aí é uma coisa que a gente precisa avisar aos pais. Porque os pais ou pensam que as crianças já nascem sabendo, ou pensam: falou uma vez e já aprendeu. Que eles podem falar uma coisa e fazer diferente. As crianças aprendem pelas relações sociais que elas vivem. É pela convivência.

Eu fiz com as minhas alunas uma pesquisa, assim, bem bobinha para perceber … cada uma usou uma estratégia com as crianças. Quando então uma das meninas começou a dizer “dá licença” para perceber quanto tempo demorava para a turma inteira precisar pedir licença para pedir as coisas. Então ela começou a usar a palavra: “turma, dá licença, eu vou precisar sair um pouquinho”. Antes ela saía e não avisava. “Vocês me dão licença, eu vou falar uma coisa”; “Dá licença, eu vou precisar desse lápis” … Uma semana depois, metade da turma já estava falando “Dá licença” em algum horário. Duas semanas depois a turma inteira tinha incorporado a atitude. As experiências que as crianças vivem no coletivo vão sendo internalizadas, assim elas vão aprendendo, assim elas formam aptidões, assim elas formam capacidades, assim elas formam habilidades, elas aprendem valores, aprendem sentimentos, e elas formam também essas funções psicológicas superiores com o uso. Leontiev, que trabalhou junto com Vigotsky, vai dizer mais ou menos a mesma coisa mas de um outro jeito. Ele vai dizer: a gente forma essas funções de memória, de pensamento, à medida que a gente precisa. Precisa memorizar alguma coisa? Você tem uma tarefa que precisa memorizar, vai exercitando a memória e aprende. Você tem uma tarefa que exige você pensar, você vai exercitando e aprendendo. É o exercício que forma. Para o exercício precisa antes ter a necessidade. Precisa ter uma coisa que me envolva. Por isso, uma das tarefas do professor é criar nas crianças necessidades. Ninguém nasce com necessidade de uma história. A gente precisa comer, beber e dormir. A necessidade de ouvir histórias a gente forma na gente à medida que tem alguém que conta histórias bem legal. Nossa, eu começo a adorar isso. A necessidade de atividade física, quem é atleta sabe disso, quem é bailarino, chega nas férias fica fissurado. “Ai, meu Deus, o que é que eu vou fazer. Não tem aula de balé hoje, o que eu faço?” A atividade cria a própria necessidade. Então, nós precisamos trabalhar com essa ideia.

Bem, então já falamos um pouco do conceito de ser humano, do conceito de desenvolvimento, mas falta ainda a gente falar de uma coisa importante, como forma de conclusão disso que a gente está falando. Durante muito tempo, pensava-se que a aprendizagem acontecia depois que a pessoa tivesse se desenvolvido. Por isso o conceito de criança pequena, pequenininha, que não é capaz, incompetente. Foi o viés biológico que ajudou a gente a pensar isso. A criança cresce um pouco, aparecem as funções e aí fica uma via aberta para aprender. Os estudos têm mostrado que é o oposto disso. Não tem desenvolvimento natural. Tem formação e desenvolvimento de funções psicológicas superiores movidas pela aprendizagem. Movidas pelo exercício coletivo. Movidas pela atividade social. São as aprendizagens que movem o desenvolvimento. Daí mais ainda a importância do professor. Porque é o professor que vai garantir o que deve promover situações em que as crianças aprendam, e, à medida que aprendem, se desenvolvem. Então, o conceito de aprendizagem, o conceito de desenvolvimento, o conceito de ser humano, o próprio conceito de criança, que é capaz de aprender, que também nasce nessa mesma compreensão. Se estou percebendo que a criança está se desenvolvendo desde que ela nasce é porque ela está aprendendo. À medida que a gente vai percebendo isso, vai ficar cada vez mais importante a gente entender como é que as crianças aprendem. Nós já comentamos que elas aprendem na relação social. Mas se tem uma coisa acontecendo aqui e eu estou aqui só de corpo presente, não estou afim e nem um pouco com vontade de me envolver na necessidade de aprender sobre o que esse grupo está fazendo, será que meu aprendizado é igual a uma outra situação em que eu estou envolvida com o grupo, estou interessada, precisando aprender aquilo, estou ligada naquilo que está acontecendo. A gente sabe que o adulto ou a criança aprende quando ele é sujeito da atividade. Não adianta a gente pagar uma boa escola, passar no vestibular, encostar na cadeira e deixar o professor me ensinar. Quem aprende, aprende na condição de sujeito. Aprende porque está interessado. Isso aí me afeta, faz sentido. Só aprendemos na condição de sujeito. Por conta das experiências que a gente vive e que move o nosso desenvolvimento. É preciso, e esse é o papel importante do professor, criar as necessidades nas crianças, despertar nas crianças o querer, despertar as crianças para estarem ativas no processo. Vamos conversar um pouco sobre isso.

A gente sabe que as crianças aprendem desde que elas nascem, mas em cada idade elas aprendem de um jeito. Vigotsky vai dizer que a gente aprende sempre devido à contradição que a gente está vivendo. De repente, se a gente cai de paraquedas lá na China, nós vamos ter que nos comunicar. O que é que vai acontecer? Nós vamos fazer um baita esforço para aprender. Mímica até um determinado ponto mas depois já não resolve mais. Qual é a contradição que move o desenvolvimento das crianças pequenininhas, os bebês? Vigotsky vai responder essa pergunta. A grande contradição do primeiro ano de vida é que as crianças dependem profundamente dos adultos, Uma coisa está lá mas eu não consigo me mexer daqui. Eu quero … eu estou precisando tomar uma aguinha agora. Mas eu estou aqui, sou bebê, não consigo me mexer. Alguém precisa ver que eu estou molhadinha e eu quero trocar de roupa. Essa é a minha contradição. O que eu faço? Então ele vai dizer que ao mesmo tempo que a criança tem necessidades que a tornam profundamente dependente do adulto, ela não consegue comunicar. Ela não tem nenhuma linguagem desenvolvida ainda. Ela não tem uma mímica. Nem uma linguagem oral. Mas ela precisa se comunicar. Então, esse “precisar se comunicar” faz com que a atividade que mais proporciona o desenvolvimento dela ao longo do primeiro ano seja a comunicação emocional. Essa comunicação que ela faz com o adulto. A mãe fala isso “esse choro eu já sei do que que é; ah, esse choro é de fome; esse choro é de dor.” A criança vai estabelecendo uma comunicação emocional com o adulto. Só o jeito que ela olhou para mim, eu já sei, alguma coisa deu errado aí e ela está querendo a minha ajuda. Então, comunicação emocional é a primeira atividade das crianças ao longo do primeiro ano. Criança se comunica com o adulto chorando, daqui a pouco apontando, daqui a pouco fazendo um ruído, daqui a pouco olhando a coisa, enfim. O adulto se comunica com a criança também: olhando e a forma como ele olha, tocando, a forma como a gente toca, falando, a forma como a gente fala. Esses elementos vão constituir, do ponto de vista da criança e do ponto de vista do adulto, a linguagem da comunicação dessa idade. Dependendo da forma como o adulto pega a criança do berço, está falando alguma coisa para a criança. E essa coisa que ele está falando vai formando a sua autoestima. Vai formando a imagem do que a criança é. Se o adulto pega a criança e dá uma sacudida e vai falando, a criança não precisa nem entender o que o adulto está falando, só o jeito de como ele faz vai criando nela uma autoestima, às vezes vai murchando a flor. Se o adulto pega a criança como… outro dia eu fiz uma reflexão sobre a cadeira do meu dentista. O meu dentista faz assim: eu sento lá e ele vai conversando. “Eu vou abaixar a cadeira, agora eu vou deitar. Agora eu vou subir não sei o que. Eu sei que ele me avisa, assim eu não levo susto. E aí, saindo de lá, eu fui para a creche. Aí eu vejo a educadora, que por não ter formação, por nunca ter pensado sobre isso, como eu também não tinha até aquele momento, me pega uma criança, a criança estava brincando, para limpar o nariz. Fazer uma boa ação. Só que a forma como ela fez foi uma forma não pensada sob o ponto de vista da educação da autoestima da criança. É uma forma não pensada em relação à formação de alguém que está descobrindo quem eu sou. Ela chegou, colocou a mão por detrás do cangote, com a outra mão ela chegou com o papel higiênico e pegou o nariz da criança e deu-lhe. A criança levou um susto e imediatamente eu me lembrei do dentista. Por que o dentista me trata assim e a gente não trata assim as crianças pequenas? Quando o dentista está me tratando, sobe a cadeira, puxa a cadeira, vou acender a luz, vou apagar a luz, ele está me respeitando. Ele não quer que eu leve um susto. Vocês sabem que quando a gente vai ao dentista já vai com os batimentos cardíacos meio fora do lugar. Vai com medo. Uma coisa que você não entende que o outro vai falar ou vai fazer. Ele me respeita e nós precisamos mostrar o mesmo respeito pelas nossas crianças pequenas, fazendo com que elas sejam, não objeto da nossa intervenção, mas sujeito da nossa intervenção. E uma forma de fazer o outro, a pessoa ser sujeito é eu contar para ela o que vai acontecer. Por exemplo, com a criança pequenininha, criança pequena, de modo geral, essa relação respeitosa do adulto vai formando nela a autoestima, a identidade. Como diz Vigotsky “eu me torno pessoa por meio das outras pessoas”. É o que as outras pessoas falam de mim, é o que as pessoas fazem com relação a mim, vai constituindo em mim a imagem de quem eu sou. Nessa relação com o outro é que eu vou constituindo minha identidade. Vamos assistir o vídeo do Instituto Lóczi e ele vai mostrar para a gente como a gente faz criança pequenininha ser sujeito da atividade. Que atividade é essa que a gente faz com criança pequenininha: banhar, trocar, alimentar. Essas três atividades, ah e colocar para dormir. Essas quatro atividades constituem os momentos de educação das crianças pequenas. É por isso que os documentos oficiais hoje no Brasil falam de educar e cuidar, como uma atividade inseparável. Por que? Porque a criança pequenininha só aprende no contato com o outro, através da relação emocional. E essa relação emocional, ela só acontece quando eu estou numa relação face a face. Eu de cara com o bebê e o bebê de cara comigo. É esse o momento em que o bebê aprende. E é esse, por acaso, o momento do cuidado. O momento do cuidado está começando a se tornar o momento essencial em que o adulto educa a criança. Pela forma como ele toca, pela forma como ele fala, pela forma como ele respeita o movimento da criança.

Uma questão de princípio se mantém: a forma da relação do adulto com a criança. Em setenta anos de pesquisa descobriram que se o adulto utilizar, o que eles chamam de coreografia, a criança vai aprendendo essa coreografia. O que é a coreografia na hora de tomar banho? Os adultos começam a dar banho na criança pela mão. Primeiro a mão esquerda, depois a mão direita; depois o pescoço na frente, depois o pescoço atrás, depois o braço…tem uma sequência, e não é uma sequência mecânica, mas é uma coreografia que se junta com a fala e que vira a abordagem com a criança na hora do banho. Que vai promovendo o conhecimento dessa sequência e a possibilidade dessa criança colaborar nesse processo. Conhecer e colaborar. Ter uma reciprocidade na atitude. O educador fala para a criança assim “me dá sua mãozinha” (a criança não sabe o que é mãozinha) mas se eu faço isso todos os dias, falando isso, tem uma hora em que ela sabe o que é mão e ela dá a mão. O educador não faz nada sem o consentimento e o olhar da criança. O educador nunca pega a criança de qualquer jeito. Chama a atenção da criança antes de pegá-la. Carrega ela numa posição que faça ela se sentir confortável. Quanto menos a gente forçar posturas nas crianças mais qualidade física de vida elas vão ter. Hoje as pesquisas na fisioterapia mostram isso para a gente. Quanto menos a gente força a criança a adotar uma postura física, sentar quando ela ainda não consegue sentar sozinha, ficar de pé quando ela ainda não dá conta de ficar de pé sozinha, todas essas posturas, bebê conforto, andador, tudo está sendo retirado profundamente das práticas porque descobriram que isso força a coluna, força joelho, um monte de coisa que vai ser lucrativo para o fisioterapeuta mas não vai ser lucrativo para as crianças e para a família. Vamos observar um pouco esses cuidados, de como o adulto pega a criança, como ele respeita a criança, qual o esforço que o adulto faz para estabelecer essa relação face a face. Qual o esforço que o adulto faz para estabelecer essa relação olho no olho com a criança, comunicação emocional. (Exibição do vídeo da experiência Lóczi)).

Na experiência assistida, assim como em outras experiências por aí, afora, o número de crianças por adulto é o mesmo que da gente aqui, padrão internacional, seis crianças por adulto. Uma coisa que é importante e que eles descobriram e os ingleses numa outra pesquisa também comprovaram, no caso da creche que eu acompanho, tem dezoito crianças e aí tem três adultos. Os adultos circulam com todas as crianças e as crianças não têm um adulto referência. Lá em Lóczi e numa pesquisa inglesa eles descobriram o que é ter uma pessoa, que a gente começa a chamar de pessoa chave para cuidar das crianças. Então, num grupo de dezoito, em vez dos três adultos cuidarem de todos os bebês, cada adulto se responsabiliza por seis. Então, o estabelecimento da relação de comunicação, de troca, de reciprocidade é muito maior onde tem essa pessoa chave porque a criança reconhece, se acostuma, responde melhor nessa idade a uma pessoa única, acompanhando melhor o processo dela. Enquanto as crianças estão sendo banhadas, as outras estão fazendo alguma coisa. Nós vamos ver o que é essa outra coisa, portanto, é o papel do professor da educação infantil promover. Falar um pouquinho da organização do espaço e da atividade autônoma das crianças com objetos. Articulação de duas coisas: um tempo de qualidade que o adulto gasta com a criança e a organização do espaço onde a criança possa, no tempo em que as outras estão sendo cuidadas, brincar sozinha com os objetos. E esse é o grande desafio da educação das crianças nessa idade. Por isso que é tão importante a forma como nós acolhemos as crianças na escola. 

Como que as crianças chegam, como que a gente acolhe essa chegada. A atenção que se presta a esses primeiros momentos de experiência da criança na creche. Porque quanto mais ela tiver confiança no adulto, mais segurança ela tem de estar sozinha. As pesquisas mostram que, uma vez que a criança tem assegurada a sua necessidade de atenção, e essa necessidade a gente assegura no momento da troca, do banho, da alimentação, do encaminhamento do sono, naquele momento que é um a um, educador e criança, quando se garante essa atenção de qualidade, a criança tem vontade de fazer outras coisas. Na psicologia a gente chama de “vontade de obter impressões”. Ela quer ver, ela quer pegar, ela quer colocar na boca, quer bater, quer ouvir barulho, quer experimentar. Articular esses dois momentos. No espaço que a gente vai ver, a articuladora não está dirigindo a atividade das crianças. Ela está dando banho. Indiretamente ela passou por lá. Ela organizou o espaço, ela substituiu objetos, ela está atenta observando. Mas ela não está diretamente dirigindo a atividade. Tanto os objetos que ela colocou, o espaço que ela organizou, que passa a atrair a atenção das crianças.
2ª parte
Ah, hoje estou cansada, vou deixar as crianças no berço!” Por que a gente demorou tanto para tirar os berços, quer dizer, estamos tirando ainda, estamos começando, lutamos ainda contra os berços. O professor brasileiro ainda se acha com a prerrogativa de decidir se tira a criança do berço ou não. Se não tivesse esse problema, podia ter berço. Igual nas famílias, quando nasce um bebê, o que a gente faz? Compra um berço. Por que a gente compra um berço? Porque é o lugar do bebê deitar e dormir. Só que o que acontece com a gente em casa? O bebê acordou e a gente vai lá e tira o bebê do berço e bota ele para brincar no chão. Se essa fosse a verdade na escola brasileira, ter berço ou não ter berço não era problema. O problema é que com as condições de trabalho que estão avançando… (eu acho que vocês aqui tem uma condição de trabalho muito legal dentro do que a gente conhece do Brasil a fora). Como a gente tinha dezoito bebês para uma educadora, o que era o berço? O berço era a condição de trabalho da professora. Deixava dezessete no berço e tirava uma para fazer alguma coisa. Por que a gente lutou tanto para não ter o berço? Para que a criança tivesse autonomia, não tolhida pelo professor. Vai ter berço ou não vai ter berço, essa não é a questão. O mais importante é a criança ter liberdade de experimentação. Nessa época, no Instituto Lóczi, eles ainda não tinham os berços internos. Hoje eles ainda mantém os berços externos. Os bebês vão dormir, eles engatinham e vão dormir lá fora, naqueles berços altos que se viu no vídeo. Mas não passa pela cabeça do professor que a hora em que a criança começa acordar ele não vai lá e tira a criança do berço. Da mesma forma, isso é uma coisa da cultura, da mesma forma que não passa pela cabeça do cidadão suíço votar mais de uma vez, ainda que ele possa. Eu vi as eleições na Suíça: não tem título de eleitor, não tem ninguém na seção de votação controlando você. Você vai lá e vota. Na esquina. Uma urna na esquina. Quem controla? Ninguém. A pessoa vai lá e vota. Não precisa de ninguém para controlar. E se a pessoa quiser votar mais de uma vez? A pessoa olhou para mim e disse “Por que ela faria isso?” Eu quase morri de vergonha. Não sei, aqui no Brasil, se pudesse ia ter gente que ia votar trezentas vezes. É uma questão de cultura. Então, berço ou não berço, ele só se torna importante se a criança fora do berço tiver organização do espaço para provocar atividade legal. A relação com o adulto estabelecida, que seja essa a relação, que, no primeiro ano, que a gente viu, crie confiança do bebê no adulto. Esse é o nosso desafio: criar na criança pequena a confiança no adulto. A segurança no adulto. Ao mesmo tempo, o adulto oferece uma atenção de qualidade para que a criança fique firme e tranquila, curiosa para fazer as outras coisas. 

O que vai concretizar a ação da nossa proposta pedagógica na escola? Organização do espaço, organização e uso do tempo, as relações entre os bebês, entre os bebês e os adultos, não só o professor, os adultos, a faxineira também está pensando o que é melhor para as crianças, como ela contribui, a cozinheira, o que é melhor para as crianças e como ela contribui. E a relação escola/família, importantíssimo. Essa articulação nós precisamos fazer. Não substituir a família. Nós somos parceiros. E parceiros que dividimos trabalho. A creche não é mais o lugar onde a gente entrega a criança no fim da tarde limpinha e arrumadinha. A creche entrega a criança no fim da tarde precisando tomar um banho porque ela se esbaldou na creche, precisando ser alimentada em casa porque a gente não precisa substituir a educação alimentar e o culto da refeição em família. Nós não precisamos e nem podemos substituir pai e mãe. Porque os pais precisam saber que quando eles têm um filho eles tem de ter uma noção de como alimentar essa criança. Isso não quer dizer que nós vamos decretar que o capitalismo deixou de ser selvagem. Os pais precisam saber que essa responsabilidade é deles. O nosso Estado brasileiro é muito deseducador. Quando cria um serviço legal como a creche, acaba criando na família de que agora não precisa se preocupar mais, que a creche vai dar conta. Não, a creche faz uma parte. A outra parte a família precisa fazer. A terceira coisa é o que a criança faz enquanto ela vai para a creche, que atividades então. Esses elementos concretizam a experiência pedagógica. O que articula é o propósito. 






























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